quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Episódio: Dagmar Hagelin e Norma Burgos


Dagmar Hagelin


O sol matutino do verão rasgava as nuvens naquele despertar de dia e a rua El Palomar recebia sua devida iluminação. O ano de 1977 começava pesado tanto para a Argentina, cujo governo acabara de ser tomado pelo Processo de Reorganização Nacional, quanto para a Srta. Norma S. Burgos, que acabara de perder sua filha. Esta última, porém, levava vantagem sobre sua pátria, pois podia contar com o consolo de Dagmar Hagelin; uma bela jovem de quem se amigara recentemente.

Dagmar atravessava com ânimo (embora que comedido) a rua de El Palomar; se comprometera a prestar condolências a sua amiga, mas logo que de lá saísse, pediria o carro a seu pai e poria em pratica seu plano de passar o que lhe restava de recesso colegial tomando banhos de sol, aos sons de ondas na praia. Alcançou o portão da residência dos Burgos e foi cordialmente atendida pelo ansioso e abalado Sr.Burgos (pai solteiro de Norma), que segurou-lhe a porta para entrar e quis ajuda-la a subir as escadas, qual configura a obrigação cavalheiresca predominante entre os argentinos.



Dagmar, dispensou, porém tal gentileza; seria afinal redundante para ela, não só por sua idade mas pela sua grande disposição (era uma atleta e seu corpo de pele alva europeia ressaltava sua propensão esportiva).

Por fim entraram.O Sr. Burgos esperou até o ultimo segundo para manter aberta à porta e, antes de fecha-la, sentiu um ímpeto de revistar o horizonte. Desviou sua atenção para cada casa na vizinhança e desceu seu olhar para os táxis que corriam a rua naquele momento. Desconfiou de algo e suspirou. Fechou a porta e juntou-se as mulheres conversando na sala.

Um grande desabafo. Toda aquela discussão era sobre isso: desabafar sobre a perda de alguém. Dagmar viu Norma chorar, o que fez que ela mesma chorasse e que ambas precisassem do acolhimento do Sr. Burgos. Não muito depois, as lágrimas se secaram e tomaram juntos seu dejejum. À mesa a conversa aflorou, surgiram os fofocas, os chistes e por fim alguns sorrisos. Voltaram para mais uma rodada de depressão na sala, mas superaram-na com muito mais facilidade. Como sempre em tais ocasiões, os minutos iniciais se dilataram rapidamente em horas e, apesar de ainda ser cedo, Dagmar achou de bom tom não mais estender a sua estadia. Se despediu da então aliviada Srta. Burgos que compreendeu, agradecida e sem pesares à sua partida e deixou-se  ser acompanhada pelo Sr. Burgos a porta da casa, onde então despediu-se dele também.

Desceu degrau por degrau a escada  que levava a calçada e abriu os portões brancos destrancados que davam para a rua; sempre assistida pelo Sr. Burgos que se recusava a fechar a porta antes que uma visita estivesse claramente fora de sua casa, onde dela se responsabilizaria por qualquer mal que lhe afetasse. Por sorte, foi só quando Dagmar pisou para o lado de fora do portão que dois homens gigantescos, devidamente fardados  agarram-na pelo pescoço num mata-leão.  O Sr. Burgos tentou reagir mas um par de HP DETECTIVE s apontaram para sua cabeça. Apavorado, pode assistir de camarote como a expressão da garota se convertia lentamente de mesmerizada para angustiada e aterrorizada. Seus olhos azuis lacrimejaram, mas foi num momento de distração dos militares que ela se contorceu, soltando-se e começou a correr.
- Atras dela, Peralta!

Ouviu um dos homens gritar, embora não lhe tenha dado muita atenção, afinal, estava correndo a uma velocidade absurda, alimentada apenas pela adrenalina. O que sim ouviu, minutos depois daquilo foi a ameaça de abrir fogo que um deles fez, caso se recusasse a parar de correr. “Um absurdo, ela pensou, apenas um lunático apertaria o gatilho numa rua movimentada como aqu...”


Antes que pudesse terminar seu raciocínio, uma bala se alojou em sua nuca, tornando seus cabelos outrora loiros e firmes e vermelhos e empapados, enquando sua testa aterrissava sobre um canteiro de cimento.
Os homens se mobilizaram: um deles  foi até o meio da rua e chamou um taxista, exigindo seu veículo em nome do estado e cortando suas desculpas para  não empresta-lo; o outro se aproximou da jovem e a pegou nos braços. Eram loiro de um semblante calmo e rígido e permanecia sério mesmo sobre a pressão com que dava ordens a seu subordinado.  Junto ao taxista, abriram o porta malas do veículo e atiraram a garota lá.


Num lampejo de lucidez, ela se despertou e tentou resistir a porta do compartimento, empurrando-a para cima, buscando uma brecha pela qual passar. Seus braços, no entanto, cederam; e, apesar do alvoroço que instaurara, perdeu a disputa com o Capitão cuja figura se prostrava justamente entre ela e o sol que refletia dourado em seu cabelo como um satírico anjo da morte.

O porta-malas foi trancado perante os múltiplos olhares de espanto.

Era 27 de fevereiro de 1977.


- Guillermo Murúa

Nenhum comentário:

Postar um comentário